Nova Escola | Como abordar transgeneridade na escola?

Instituições devem criar espaço acolhedor para alunos trans, promover o respeito e o diálogo sobre o tema e desenvolver iniciativas contra a LGBTfobia

Abordagens sobre gênero e sexualidade devem acontecer na perspectiva da afetividade, com atividades que reforcem os conceitos de valorização da vida, ética e respeito. Foto: Getty Images

Há 14 anos, o Brasil se mantém em 1º lugar no ranking  dos países que mais assassinam indivíduos trans no mundo. Vítimas de negligências médicas, discursos de ódio, estupros e outras tantas violências, muitas vezes essas pessoas têm o pleno acesso à Educação negado, assim como outros direitos. 

Como quaisquer crianças e adolescentes, transgêneros tendem a passar grande parte de suas vidas no ambiente escolar. Suas vivências, porém, não são as mesmas, pois esse ainda é um espaço bastante hostil às pessoas trans, conforme os dados publicados pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil), em 2020. Segundo a pesquisa, 64,1% delas não chegam a concluir o Ensino Médio.

Entre os motivos do abandono escolar estão as dificuldades de usar o nome social e frequentar o banheiro da escola que representa o seu gênero, além da falta de abordagem de pautas como transfobia ou LGBTfobia com os estudantes. 

“Esses fatores colaboram com a indisposição de ir às aulas e se transformam em exaustão. Mais cedo ou mais tarde, isso vira desprezo, culminando na desistência forçada”, aponta o documento. 

Pessoas LGBTQIAPN+ nas escolas

Sayonara Naider Bonfim Nogueira, ativista e coordenadora do Projeto Travessia, vinculado à Rede Trans Brasil e que funciona como um Observatório Nacional de Violações de Direitos de Pessoas Trans, afirma que o país é muito rico quando se trata de leis e políticas de inclusão escolar. No entanto, esse debate segue longe do campo da diversidade sexual. 

Ela considera que o sucateamento da Educação, a ausência de formação continuada dos professores, o cansaço que acomete os profissionais e a ausência de dados sobre a população LGBTQIAPN+ nas escolas faz com que a formulação de políticas públicas estacione, gerando danos à vida social e educacional desses alunos.

Em 2018, a regulamentação do uso de nome social nas instituições de Educação Básica foi aprovada pelo Ministério da Educação. Desde então, jovens maiores de 18 anos podem solicitar o registro no ato da matrícula escolar e menores de 18 anos precisam de autorização e assinatura das pessoas responsáveis. 

O uso de banheiros, vestiários e demais espaços segundo a identificação de gênero também está garantido nas escolas. Na visão de Sayonara, apesar de representarem um avanço, essas conquistas são apenas ponta do iceberg, pois “faltam políticas públicas de permanência, que incentivem o combate à discriminação”.


  1. Muito além do mês do orgulho LGBTQIAPN+

    Projeto propõe trabalhar a temática o ano inteiro, debater preconceitos e integrar estudantes LGBTQIAPN+

    Fábio de Lima, professor de Filosofia da EE Professor Joaquim Luiz de Brito, em São Paulo (SP), é idealizador do projeto “Brito Sem LGBTfobia”. A iniciativa surgiu em 2013, quando ele identificou que alguns alunos usavam terminologias desse universo para ofenderem uns aos outros – até mesmo de “brincadeira” – oprimindo aqueles que eram parte do grupo LGBTQIAPN+. 

    Entre as primeiras ações, há dez anos, a escola promoveu uma sessão de cinema do filme Orações para Bobby, baseado em uma história real norte-americana, na qual a mãe tenta “curar” o filho da homossexualidade. Segundo Fábio, o resultado entre os estudantes cisgênero foi imediato, com o reconhecimento de suas atitudes preconceituosas. 

    A psicóloga clínica Liliana Seger, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), diz que as instituições devem funcionar como um ambiente inclusivo e acolhedor, seja em relação ao gênero ou à sexualidade. Ela defende que, muito além de cursos ou palestras que tratem pontualmente do tema, é preciso trazer as questões para o dia a dia, com atividades que ensinem a lidar com as diferenças.

    O professor Fábio conta que, em 2015, o projeto “Brito Sem LGBTfobia” trabalhou a temática do filme Priscilla, a rainha do deserto, centrado na história de duas drag queens e uma transexual, levando até à escola pessoas que integram essa comunidade. “Além do apoio das gestoras, temos muita adesão dos alunos. São várias equipes atuando para organizar o evento anual”, descreve Fábio. “Eles [estudantes LGBTQIAPN+] se sentem parte da escola, pois é um projeto que visa não só criar uma consciência livre de preconceito, como integrá-los”, diz o professor. Como outras possibilidades de filmes para tratar do tema, ele sugere XXY, Tomboy e Minha vida em cor-de-rosa.

Contação de histórias, empatia e transgeneridade

Em Porto Alegre (RS), na EMEF Saint-Hilaire, a professora Maria Gabriela Souza acredita que a leitura é um direito de aprendizagem que contribui para o diálogo sobre transgeneridade. “A partir da mediação de leitura é possível estabelecer um espaço de segurança para que os alunos possam se expressar.”

É dessa maneira que ela atua na orientação do Coletivo de Mediadoras(es) de Leitura Luísa Marques, que acontece no contraturno escolar. “Apostamos nessa experiência como dispositivo pedagógico que valoriza o bem-estar físico, mental e social dos alunos. [Há uma intencionalidade] associada ao compromisso em melhorar a qualidade de vida no território educativo. [Desenvolvendo  ações como essa], favorecemos as condições de expressão, a escuta e o acolhimento dos estudantes”, explica Maria Gabriela. 

Segundo a professora, a contação de histórias é uma ponte para abordar o respeito à identidade de gênero. No projeto “Arco-íris: é sobre respeito”, estudantes e mediadoras(es) de leitura contam histórias para falar sobre o respeito às pessoas LGBTQIAPN+ e desenvolver a competência 10 (Responsabilidade e cidadania) da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Trabalha-se, entre outros aspectos, a incorporação de direitos, a tomada de decisões, a análise de valores individuais e coletivos e a participação social. 

“Nesse caso, a empatia é um dos caminhos para a alteridade e está presente nas propostas que atuam para discutir o respeito às pessoas transgênero”, argumenta a professora. 

Para ela, também é necessário que a escola construa um acervo que possibilite realizar essas dinâmicas: “Alguns livros, como A história de Julia e sua sombra de menino e Julian é uma sereia, são boas indicações. Além disso, a série de animação Que corpo é esse, do canal Futura, reúne episódios que abordam o tema [e podem complementar as leituras].” 

Pautas LGBTQIAPN+ e combate a preconceitos

Sayonara, do Projeto Travessia, também é educadora e lecionou Geografia durante 16 anos na Educação Básica. A partir dessa experiência, ela acredita que as abordagens sobre gênero e sexualidade devem acontecer na perspectiva da afetividade, com atividades que reforcem os conceitos de valorização da vida, ética e respeito, e que impactem positivamente na formação das pessoas. 

Ela explica que as competências socioemocionais presentes na BNCC permitem o trabalho com temas como sexualidade e diversidade. Por outro lado, de maneira concreta, o assunto só aparece em Ciências da Natureza no 8º ano. “Mas ele é levado de forma ‘biologizante’, esquecendo da questão afetiva, dos direitos humanos e da cidadania.” 

Na EMEF Bernardo Lemke, de Nova Hartz (RS), a pesquisa foi um dos caminhos encontrados pela professora Denize Groff para abordar as pautas ligadas à comunidade LGBTQIAPN+. Ela orienta projetos de iniciação científica, que permitem aos alunos estudar temas de seu interesse. 

“Tenho um grupo de 6º ano, por exemplo, que ficou chocado com o número de mortes de homossexuais no Brasil e resolveu desenvolver um plano para investigar as causas da homofobia”, diz. 

“Alguns relataram o quanto essa problemática é presente [em seu cotidiano], com parentes que não são aceitos nas famílias. Assim, eles estão buscando entender o preconceito [nas esferas] micro e macro, com resultados que apresentarão na mostra de projetos científicos. Diante disso, um dos objetivos é colocar em prática estratégias para combater a discriminação na comunidade escolar”, reforça.

Como professora de História, Denize lembra que a temática da homoafetividade costuma aparecer nas aulas de História Antiga. “Muitos soldados gregos e romanos se casavam com mulheres para garantir a linhagem, mas a relação amorosa se dava de forma homoafetiva. Em vez de gerar constrangimento, o aluno vê que é algo natural e há muito tempo presente [na sociedade]”. 

Ela considera, no entanto, que nos últimos anos houve retrocessos quanto à liberdade para abordar alguns assuntos em sala de aula, no contexto das fake news sobre a chamada ideologia de gênero. Assim, caberia à escola e à rede de ensino oferecer segurança, apoio e formação aos educadores para discutirem sobre diversidade.

  1. Miniglossário LGBTQIAPN+

    Confira as definições de cada termo da sigla

    LGBTQIAPN+

    Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e Não-binários, além de outras pessoas que não se encaixam nestes termos.

    Lésbicas 

    Mulheres que sentem atração sexual/romântica por pessoas do mesmo gênero.

    Gays 

    Homens que sentem atração sexual/romântica por pessoas do mesmo gênero.

    Bissexuais

    Relacionam-se com pessoas dos dois gêneros.

    Transsexuais/transgênero

    Não se identificam com o gênero que lhe foi atribuído. Inclui mulheres trans, homens trans e travestis (sempre mulheres).

    Queer 

    Pessoas que transitam entre os “gêneros”, sem necessariamente concordar com tais “rótulos”.

    Intersexuais

    Possuem variações biológicas não binárias. Uma pessoa intersexo pode ser hétero, gay, lésbica, bissexual ou assexual e se identificar como mulher, homem, ambos ou nenhum.

    Assexuais 

    Aqueles que não sentem atração sexual por nenhum dos dois gêneros. 

    Pansexuais 

    Atraem-se por pessoas independentemente do seu gênero -- sejam homens ou mulheres cis/trans, agênero ou não-binárias.

    Não-binários

    Identificam-se com mais de um gênero. Geralmente, entendem sua identidade como algo fluido, que vai além das categorias homem e mulher.

O papel da gestão escolar no acolhimento de pessoas transgênero

Para que a escola proporcione um ambiente saudável e seja  um espaço de diálogo e combate aos preconceitos, o papel dos gestores também é fundamental. Eles devem ser capazes de lidar com essa pauta e identificar eventuais violências. 

“Acho importante que a gestão defina um professor articulador das temáticas de gênero. Essa pessoa torna-se uma referência para estudantes trans, que conseguem denunciar situações opressoras e constrangimentos. Esse educador vai ajudar a encaminhar, junto à direção da escola, o combate aos preconceitos”, sugere a professora Maria Gabriela. 

“Na minha escola, eu faço esse papel. É essencial que, ao receber a demanda do aluno, seja feito o acolhimento e o registro para seguir com as medidas necessárias. Ele precisa saber que pode confiar na escola.”

Segundo a psicóloga Liliana, além de estar aberto para ouvir, os professores e gestores devem observar mais de perto o aluno trans que demonstrar alterações no comportamento e intervir por meio do diálogo. “Quando a gente vê um adolescente que era tranquilo e está muito agressivo, fechado ou falando demais, cabe perguntar se ele precisa de ajuda”, mas sempre respeitando o espaço da individualidade”. 

De acordo com Sayonara, a construção de um Projeto Político Pedagógico (PPP) alinhado à proposta da inclusão e da diversidade é ainda mais significativo. “O documento deve ser idealizado em conjunto e trazer temáticas como gênero e sexualidade para reuniões pedagógicas e conselhos, preparando o corpo docente para ocorrências [como denúncias de assédio]”, destaca. 

Com uma reestruturação cíclica do PPP, é possível incluir propostas que expandem a diversidade nos espaços, estabelecendo ações e atividades institucionalizadas, que não dependem apenas da iniciativa dos professores. 

Por fim, ela orienta que, para combater a LGBTfobia no ambiente escolar, é imprescindível que os gestores desconstruam estereótipos e não compactuem com os agressores – sejam eles docentes ou alunos. Se necessário, acionem ainda o Conselho Tutelar, o Ministério Público e as Delegacias Especializadas de Proteção à Criança e ao Adolescente.

Fonte: Nova Escola

Anterior
Anterior

Agência Rádioweb | Entenda como baixas temperaturas podem afetar o estado emocional

Próximo
Próximo

Universa UOL | Gabi Garcia e Mackenzie Dern: lutadoras são vítimas de violência doméstica